Gestor responsável pela criação da LIC-RS, primeiro Secretário de Estado da Cultura, Carlos Appel comenta a crise na pasta
Carlos Jorge Appel é a maior referência entre aqueles que já ocuparam o cargo de secretário da Cultura no Rio Grande do Sul. Sua primeira gestão, no governo Pedro Simon (1987 – 1990), congregou toda a comunidade cultural após um período obscuro para a produção artística. Mais de 20 anos depois, o questionamento de grande parte dessa comunidade volta à raiz da questão: qual a importância da pasta para o Estado?
Natural de Brusque (SC), Appel é autor de livros de poesia e ensaio, foi professor da UFRGS e crítico literário e hoje dirige a Editora Movimento. Na entrevista a seguir, o ex-secretário fala sobre a crise atual.
Zero Hora – Que diretrizes devem nortear a elaboração de uma política cultural pública num Estado como o Rio Grande do Sul?
Carlos Jorge Appel – Qualquer projeto de gestão cultural deve respeitar premissas básicas e levar em conta o contexto em que se está. Não se pode assumir a Sedac sem se conhecer as dificuldades e as potencialidades da cultura no Rio Grande do Sul. Falo de detalhes desse contexto, porque toda a rede em torno da secretaria é muito grande – são mais de 30 instituições, todas muito diferentes entre si. Também é fundamental se saber qual o papel da pasta no projeto do Estado como um todo. Ainda que não seja prioritária, e que tenha o orçamento mais baixo entre as secretarias, a Cultura precisa ajudar o Estado a pensar suas finalidades e seus princípios. Cabe à Cultura, por meio de projetos convergentes com outras pastas e até instituições municipais e federais, iluminar o Estado, refletir sobre sua condição, dizer quem é e em que situação se encontra.
ZH – A atual secretária, Mônica Leal, justifica a crise afirmando que precisou primeiro “arrumar a casa”, referindo-se à situação financeira em que encontrou a Sedac. Isso o que o senhor diz seria algo para se fazer num segundo momento?
Appel – É lógico que é preciso primeiro deixar a secretaria em condições para se poder trabalhar: organizar suas operações financeiras, conhecer suas instituições e o que é preciso para que funcionem. Essa é uma premissa inicial, assim como estabelecer parcerias pelo Estado e fora dele, para que, a partir daí, se possa de fato trabalhar. A experiência que tive indica que também é fundamental ouvir a comunidade cultural – foi a partir dessas reivindicações que criamos a Lei de Incentivo à Cultura – LIC-RS (na gestão entre 1995 e 1996, no governo Antônio Britto) e, antes, a Sedac (entre 1987 e 1990, no governo Simon). Mas há outro lado: não faz sentido deixar a casa em ordem se não se dá um passo adiante no sentido de fazê-la funcionar com projetos de qualidade, assim não adianta ter um orçamento maior e não ter projetos que o justifiquem.
ZH – Esta pergunta serve tanto para a Sedac quanto para a LIC-RS. Muita coisa mudou desde a criação tanto da secretaria quanto do principal mecanismo de financiamento dos projetos culturais do Estado. A forma com que ambos se apresentam e a função que cumprem, hoje, determina que se pense em readequações estruturais?
Appel – A LIC criada há 15 anos foi a lei possível de ser criada. Acredito que esteja na hora de ser reavaliada de maneira profunda. Houve problemas nos últimos anos, com denúncias de fraude, déficit muito alto, confronto da Sedac com Conselho Estadual da Cultura etc. A atual secretária teve dificuldades para lidar com o mecanismo, saná-lo. Sua gestão sofreu por conta disso. Ela teve de dedicar tempo e energia que poderiam ter sido usados em ações que atendessem mais os anseios da comunidade cultural.
ZH – Mas agora a LIC já está reorganizada. O problema não passou?
Appel – O trabalho nesse sentido foi bom, mas o fato de ter havido tantos problemas talvez signifique algo. De qualquer forma, me parece ser hora de uma grande união. O próximo gestor tem de chamar a comunidade cultural, ouvi-la e saber se peças-chave da engrenagem, como a lei de incentivo, estão funcionando a contento. Se a resposta no caso da LIC for positiva, ótimo. Porém, dada a situação atual, acho fundamental que esse chamamento seja feito. É preciso lembrar que, diferentemente de 1995, quando a LIC-RS foi criada, hoje há fundos e outros mecanismos de incentivo municipais. Há mais alternativas para quem produz cultura. Faz-se necessário perguntar: qual o papel da LIC nesse novo contexto? Defendo a realização de um grande encontro estadual para discutir questões como esta.
ZH – O senhor parece estar acompanhando bem de perto a gestão da cultura no Estado.
Appel – As pessoas vêm falar comigo sobre a Sedac, isso é constante. Também mantenho amigos de áreas mais técnicas com os quais falo sobre as possibilidades da Cultura. Mas é preciso tomar cuidado com avaliações radicais. Sei o quanto é difícil de trabalhar na área, o quanto os agentes culturais gostam de discutir e o quanto é complicado promover articulações entre eles. Mas quem assume o cargo tem de saber quais são essas complicações. Quando esses agentes são ouvidos, as necessidades da área são estudadas e a partir disso se estabelecem focos precisos, as ações se tornam lógicas, coerentes. E bons projetos superam as adversidades. Quem paga a conta, tendo sensibilidade, não resiste a bons projetos.
Zero Hora – Quais, na sua opinião, deveriam ser as prioridades na gestão da Secretaria de Estado da Cultura hoje?
Carlos Jorge Appel – Entre outras coisas, eu diria que deveríamos trabalhar numa aproximação do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Estadual (Iphae) com o Nacional (Iphan), para que as ações de ambos se tornem convergentes – algo que não sei se está acontecendo. Cada um parece trabalhar olhando para um lado quando, no fim das contas, seus projetos vão na mesma direção, visam aos mesmos objetivos e são sentidos nos mesmos locais. Também acho que é urgente pensar em uma nova Biblioteca Pública. Esta, para mim, deveria ser a grande proposição para o próximo gestor da Sedac. Se a secretaria, como se tem sugerido, está longe das nossas prioridades, vamos ficar parados? É tarefa do poder público virar o jogo, dando, por exemplo, um palco nobre para os livros, mostrando para essas pessoas a importância dos livros. Em qualquer lugar, a Biblioteca Pública deve ser um cartão de visitas. E a nossa me parece que perdeu um pouco a condição de referência para a sociedade. Não à toa – ela foi criada na época em que Porto Alegre tinha 250 mil habitantes.
ZH – Ela está defasada?
Appel – Talvez ela esteja um pouco distante das pessoas. Fazer essa aproximação pode ser algo interessante para mostrar o valor da cultura à população. “A preocupação que uma sociedade tem para com os livros (lendo texto que ele próprio escreveu, em material produzido sobre a biblioteca em uma de suas gestões à frente da Sedac) espelha o seu nível econômico, social, político e cultural. Por isso, a Biblioteca Pública é uma espécie de livro transparente, que mostra a alma da cidade e das pessoas que nela vivem.” Não é preciso ir além da América Latina, eu diria que não é preciso sair do Brasil para constatar como uma Biblioteca Pública pode ser qualificada, organizada e mais valorizada pelo governo, e o quanto isso é importante no processo civilizatório e no aumento do nível não só cultural, mas social, político, econômico de um lugar.
ZH – Quais as outras medidas que o senhor sugere aos próximos gestores?
Appel – O Rio Grande do Sul precisa voltar a pensar seu papel no contexto nacional. Não faz muito, o Estado assumiu por duas vezes a presidência do fórum nacional dos secretários da Cultura, o que permitiu que chegássemos mais perto do ministro da área, propondo projetos mais importantes e parcerias mais amplas. Em outras palavras, assumindo uma participação politicamente mais ambiciosa no contexto do país. A reforma do Margs, procedida nos anos 1990 e que deu condições ao museu de crescer tanto quanto se pôde ver nos anos subsequentes, foi realizada a partir de uma parceria com o Ministério da Cultura proposta pelo Estado. Outra necessidade urgente para o Rio Grande do Sul é buscar uma maior continuidade dos projetos implementados em gestões anteriores. A persistência de grandes eventos como a Bienal do Mercosul deve servir de exemplo, assim como festivais de importância fundamental em sua área específica, a exemplo do Festival Internacional de Teatro de Bonecos de Canela. Se alguns projetos têm problemas ou precisam de algumas modificações, sugiro refletir se é melhor mesmo extingui-los em vez de aperfeiçoá-los. Só com continuidade se alcançam resultados tão expressivos como os alcançados por essas duas mostras.
DANIEL FEIX
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