Sufoco no deserto

A inopinada e indigna forma como se deu a demissão do professor Voltaire Schilling do Memorial do Rio Grande do Sul pode, ao gerar onda de indignação, ter ajudado a destampar a panela onde se cozinhava em fogo lento a apatia dos gestores da cultura e intelectuais gaúchos.

Não é de agora que a Secretaria de Estado da Cultura vem servindo de moeda de troca no jogo político e abrigo para políticos de entremez. Quando se trata de Cultura, partidos da base aliada fazem da política um fim em si mesmo e escarnecem do interesse coletivo. Isso num Estado com arraigada tradição cultural como o Rio Grande do Sul.

O outrora produtivo Instituto Estadual do Livro colapsou: está há três anos sem publicar um título. A TVE vem sendo tratada como filho enjeitado. As obras do Multipalco do Theatro São Pedro se arrastam a passos de cágado. A Ospa é um pálido espectro perto da Osesp – agoniza em modorrenta rotina de província e continua sem ver o início das obras de sua tão sonhada sede. Nossos museus, arquivos e casas de cultura vivem à míngua. Há anos não se ouve nenhuma palavra concreta sobre a construção de uma nova Biblioteca Pública, de porte. Nenhum projeto para um novo museu de arte moderna ou contemporânea. Nenhuma estratégia sólida capaz de atrair recursos de fora. Nada de consistente que ajude a levar a cultura aqui produzida para o mundo. Não se prevê nenhum prédio de arquitetura icônica. O corpo funcional está mal-remunerado e é em número insuficiente para as necessidades mais elementares. A LIC-RS vive em permanente impasse.

Não há elaboração intelectual. Não há bons projetos. Nem mesmo aqueles que poderiam ser conduzidos com simples parcerias, com aporte insignificante de recursos, como melhorar o conteúdo dos sites, firmar convênios com a Secretaria da Educação para ampliar a frequência nos museus, na Cinemateca Paulo Amorim. Sufocamos num deserto, na platitude.

Todo o modelo de gestão está superado. As instituições culturais não têm orçamento próprio, não conseguem planejar o futuro, programar-se conforme suas necessidades. Não dispomos de fundos de endowment para independentizá-las de veleidades, imediatismos ou necessidades cotidianas. Seus dirigentes não têm autonomia e são colhidos pela indigência da lógica política, como mostra bem a demissão de Voltaire, ou do apadrinhamento de interesses. Não há planos, mandatos, prestação de contas, balanços de realizações e de responsabilidade social. Mesmo com a legislação de fundações e Oscips, persistimos nas fórmulas das associações de amigos e das fundações atreladas ao governo.

Notem que o Theatro São Pedro, a nossa joia em termos de gestão cultural, sobretudo pela personalidade empreendedora de Eva Sopher, logrou razoável autonomia. É seguido pelo Margs, que graças à relevância de seu acervo tem recebido importantes apoios do empresariado, é amparado por um bom conselho e vem sendo prestigiado com administrações eficazes. São exemplos a serem emulados e empoderados. Mas funcionam como exceções que confirmam a regra.

No mundo inteiro, celebra-se o poder transformador da cadeia criativa, formada por teatro, música, artes visuais, patrimônio histórico, cinema e vídeo, televisão, rádio, mercado editorial, jornais e revistas, software e computação, arquitetura, moda, design e publicidade. Um setor que pode contribuir para formar cidadãos mais críticos, para melhorar a vida das pessoas, combatendo até mesmo chagas como a violência. Você duvida? Em plena crise global, Hollywood se sai bem com sequência de produções com grandes orçamentos e aumento de 3% na aquisição de ingressos nos Estados Unidos, apesar da dura competição dos DVDs e do download ilegal via internet. Em Nova York, a Filarmônica vendeu 91% dos assentos disponíveis na última temporada. O Metropolitan Opera arrecadou a soma recorde de US$ 2,5 milhões em ingressos apenas no primeiro dia de bilheteria.

Sempre digo não existir governo democrático 100% bom ou ruim. O governo Yeda, que pode se mostrar operante e criativo em outros setores, aprofundou uma crise já existente na Cultura. A atual administração, anódina, carente da formulação de políticas específicas, nos empurrou para a pior crise de gestão cultural de nossa história. Só não é ainda mais grave porque algumas iniciativas privadas e administrações municipais vêm ocupando em parte o vazio. Mas todos estaríamos em melhor situação se pudéssemos contar com o governo do Estado.

Por que estamos pagando este preço?

*Historiador, doutor em História pela USP, organizador de “As Guerras dos Gaúchos” (Ed. Nova Prova, 2008)

GUNTER AXT*

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seguidores