A política na Cultura

As semanas passadas levantaram a poeira de um tema velho e sempre importante, a relação entre a política e a cultura. Os fatos novos foram o fechamento da sala Norberto Lubisco, na Casa de Cultura Mario Quintana, e a demissão de Voltaire Schilling da direção do Memorial do Rio Grande do Sul. Duas coisas negativas, para todo mundo que é da cultura; só a secretária Mônica Leal, com o possível acréscimo de uns poucos que a apoiam, parece ter considerado razoável uma coisa e outra.

Mas se só ela pensa assim, contra todo mundo que interessa, a pergunta é: como se explica que ela tenha sido secretária estadual da Cultura por mais de três anos? Verdade que sai sem deixar saudade alguma; mas ampliemos a pergunta: em qualquer outra secretaria – bote aí a de sua preferência, estimado leitor, Saúde, Meio Ambiente, Polícia, Fazenda, Educação – um secretário duraria tanto tempo sem, não digo a estima, mas o respeito da área? Acho que não. Para um paralelo: houve um confronto, nesse mesmo governo, entre Marisa Abreu, na Educação, que acabou pedindo pra sair, e os professores; mas ela era do ramo, tinha mesmo dirigido o Cpers em algum momento do passado, e continua dedicada ao tema lá em Brasília; ela falava e discutia teses pertinentes (e a meu juízo bastante justas). Mas a secretária Mônica nada disso. Como explicar, então?

Hipótese: a primeira que me ocorre é a indiferença do atual governo do Estado pela Cultura, que é coisa notória. Não estou querendo dizer que Yeda ou Mônica não tenham lá suas idas ao cinema ou suas leituras, e aliás espero sinceramente que sim; o que quero dizer é que, na prática, nem uma nem outra manifestou apreço pela área, que imagino que todos, até mesmo elas, reconhecem como importante e, mais ainda, de interesse universal, porque civilizatório.

Outra hipótese, correlata e complementar: a área cultural, no grosso de suas fileiras, foi e é indiferente a esse governo. Também me parece que sim: não lembro de algum escritor, cancionista, ator ou cineasta que tenha se manifestado, nos anos Yeda/Mônica, necessidade de criar interlocução com o governo estadual, salvo no caso da Lei de Incentivo, que em tese nem depende da secretária. (Aliás, como terminou aquele confronto da secretária com o conselho? Houve uma fumaça intensa por umas semanas, e depois nada?) Os agentes culturais propriamente ditos não parecem ter feito questão de conversa com o governo, talvez, digo eu, pelas manifestações dos agentes do governo (algumas francamente deprimentes, como aquela de fazer um grande baile de debutantes como promoção cultural importante, lembra?). A secretária não é importante para a vida cultural.

E pode um Estado grande e relativamente culto como o Rio Grande do Sul viver essa relação de indiferença com a secretaria estadual da Cultura?

Poder pode, tanto que assim é. E faz pensar.


Um tanto de história
Quando saíamos da ditadura militar, virada dos anos 1970 para os 1980, os atores da cultura (artistas, produtores, intelectuais, público interessado) batalharam bastante para a criação de uma Secretaria da Cultura, até então uma seção da Secretaria da Educação. (Nos anos da ditadura, vale lembrar, algumas figuras de grande importância cultural atuaram nos órgãos estaduais, implementando lá sua visão das coisas.) Havia reuniões, simpósios, seminários. Alguns atuais partidários da governadora Yeda participavam dessas conversas, reforçando a necessidade de inventar a secretaria específica para a área cultural.

(Vamos a outro parêntese: não se trata, ao menos em princípio, de um problema de orientação partidária: em São Paulo, governado pelo mesmo partido de Yeda, o secretário de Cultura é uma figura de primeiro plano, João Sayad – e antes que alguém me lembre que ele não é nativo da área cultural, deixa eu dizer que ele sabe disso e, dotado de um senso desenvolvimentista que não existe na nossa secretária da área, se cercou de gente do ramo para tramar políticas muito interessantes de gestão cultural. Nem falemos da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, invejável em vários aspectos; falemos de caravanas de escritores percorrendo cidades do Interior para dar oficinas, com vistas a desenvolver o gosto pela escrita, tudo funcionando – atenção – nas bibliotecas públicas, que lá existem, em número e qualidade amazonicamente superior às nossas, gaúchas. Certo: São Paulo tem muito mais grana que nós; mas São Paulo tomou a boa providência de botar na secretaria de Cultura um sujeito de amplo prestígio social e político. Dá pra comparar?)

Pois bem: um bom anjo da História viu que tínhamos boa razão e nos permitiu inventar a secretaria. Lá colocamos figuras importantes, que com seus erros e acertos levaram a efeito políticas para o setor, seja em atividades diretamente produzidas pela secretaria, seja em criação de mecanismos de financiamento e deliberação. Agora, esse patético silêncio recíproco.

Não quero atenuar em nada minha desconformidade com essa gestão, mas me ocorre associar essa apatia – deles conosco, nossa com eles – a outra, mais difusa e cada vez mais notável: a nossa impressionante indiferença para com a política, hoje. O certo é que a classe média e as elites cultas simplesmente perderam o interesse pela política e pelos políticos.

Me restrinjo a observar que, com escassíssimas exceções, os políticos da atual safra que se apresentam em público (há os de bastidor, importantíssimos mas invisíveis) são lamentáveis, já nem digo no plano cultural (o seu deputado estadual leu algum livro no útlimo ano? O seu deputado federal ou o seu vereador entraram em um teatro ou em um concerto durante o mandato atual?), mas no plano ético profundo: temos sempre a impressão que o que mais fazem é lutar para continuar no cargo, cercando-se de mais comissionados, inventando leis para aumentar suas cotas de passagens e outras facilidades, brigando para entrar em mais uma comissão redundante.

Vivemos, provavelmente, o repé da democracia representativa, desejada por muito tempo, efetivada nas últimas duas décadas e pouco, que deve continuar sempre, mas deve ser sempre aperfeiçoada.


Um palco para os artistas
E tudo isso ocorre num momento de plena força da atividade cultural no Estado. Pode até faltar alguma coisa, mas vamos combinar que os produtores da cultura e da arte estão a mil, fazendo o que precisam fazer. Faça a conta, gentil leitor: cinema, literatura, música popular, as artes antigamente chamadas de plásticas, fotografia, em todos os ramos encontramos bons e ótimos exemplos de trabalho. Até mesmo numa atividade mercantil conexa, como a publicidade, temos excelentes profissionais.

O que falta mesmo, a meu juízo, e que nenhum governo estadual conseguiu (alguns nem quiseram) resolver é o da divulgação, quer dizer, da TVE. Então eu te pergunto: não era para a TVE ser o palco para todos os artistas aparecerem? Não era para ela ser o escoadouro de uma infinidade de narrativas audiovisuais que hoje em dia são produzidas aos borbotões, tanto nos ótimos cursos de cinema existentes quando em casa mesmo, dada a disseminação dos meios de produção na área? Há, por acaso, algum bom motivo para isso não rolar?

Numa imagem feita pelo sempre inteligente Nelson Coelho de Castro uns anos atrás, a TVE devia ser o lugar em que os artistas roçassem os cotovelos, se encontrassem a torto e a direito, para divulgar o que já fazem e inventar o que ainda não nasceu. Usei essa mesma imagem numa crítica, durante o governo estadual do PT – partido em que eu voto, preponderantemente –, e o então presidente da TVE ironizou as minhas palavras, tomando-me por um quase imbecil. Ele achava que já estava fazendo tudo que era para ser feito lá. Não estava; mas vá botar na cabeça de um dirigente auto-satisfeito alguma autocrítica. De lá para cá, nada mudou neste campo.

Na TVE é, seria, importante haver diretriz cultural, concepção, conceito, além de produção e veiculação. Não tem, nem ela nem a secretaria da área.

No próximo governo mudará?

13 de março de 2010 | SEGUNDO CADERNO - ZERO HORA
PESQUEIRO | Por Luís Augusto Fischer

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